O que pode o farmacêutico fazer pela saúde mental?

Em entrevista, a psicóloga clínica Rita Morais dá conselhos aos profissionais de farmácia para detetarem problemas de doença mental nos seus utentes e para se protegerem a si próprios. 

Nunca se falou tanto em saúde e em doença mental. Se, ao longo da última década, o tema já vinha sendo debatido com cada vez maior frequência, a verdade é que a pandemia o colocou ainda mais na ordem do dia. “Depois da pandemia de COVID-19, teremos uma pandemia de doença mental”, disseram alguns. 

Para Rita Morais, psicóloga clínica e fundadora da clínica Sea Yourself, na Nazaré, o cenário não é tão negro. É verdade que a pandemia trouxe novas dificuldades a muita gente, sobretudo relacionadas com questões financeiras, mas, na maioria dos casos, apenas “acordou” problemas que já habitavam o mundo interior das pessoas, argumenta a especialista. 

O lado positivo é o protagonismo inédito que a saúde mental adquiriu no espaço público. Na opinião de Rita Morais, há que aproveitar esta visibilidade do tema para implementar melhores cuidados nos diversos níveis do sistema: desde as escolas aos hospitais, passando pelos centros de saúde e outros serviços. 

Pela sua proximidade com os utentes, os farmacêuticos desempenham um papel essencial na identificação de problemas de saúde mental, no aconselhamento e no encaminhamento para os cuidados especializados nesta área, defende a psicóloga. Mas é fundamental que, pelo caminho, não se esqueçam de cuidar de si próprios: “Os profissionais de saúde estão muito habituados a serem cuidadores e, muitas vezes, têm dificuldade em pedir ajuda.” 

Que importância tem a saúde mental? 

Durante muito tempo, o foco, mesmo na Psicologia, esteve no sintoma, na doença e na tentativa de eliminar qualquer coisa que causasse desconforto. Hoje, temos uma visão mais abrangente. Sabemos que o ser humano só está bem na sua integridade se estiver bem do ponto de vista da saúde mental, uma vez que esta interfere em tudo na nossa vida, quer na nossa relação connosco, quer na relação com os outros. A forma como pensamos, sentimos e nos comportamos depende muito do modo como cuidamos da nossa saúde mental. Normalmente, a saúde mental é mais difícil de ver, medir e até de explicar ao outro do que a saúde física. Mas, seja mais ou menos visível, está presente em tudo na nossa vida. 

Hoje, fala-se muito mais de saúde mental do que no passado. Mas já é atribuído o espaço que esta área merece no âmbito dos cuidados de saúde? 

Nos últimos dois anos, a saúde mental adquiriu uma relevância muito grande. É um assunto cada vez mais falado nas televisões e pelas pessoas em geral. Sinto que a preocupação com estas questões é maior hoje do quando me licenciei. Pela primeira vez, estou a ter alguma dificuldade em ter psicólogos para trabalhar comigo, sinal de que os meus colegas estão mais ocupados. Mas temos uma grande caminhada pela frente, uma vez que esta área ainda é negligenciada nos serviços mais básicos: nas escolas, nos centros de saúde, nos hospitais. Continua a ser uma atividade sobretudo privada e inacessível a muita gente. 

O estigma associado à ida ao psicólogo ou ao psiquiatra já desapareceu? 

Ainda existe. Quando recebo pessoas no consultório e lhes pergunto o que as impediu de procurar ajuda mais cedo, respondem frequentemente que tentaram gerir sozinhas o problema, porque o psicólogo e, sobretudo, o psiquiatra estão conotados com a doença mental. Parte-se do princípio de que a pessoa tem uma patologia. Ainda temos sistemas de saúde e de seguros nos quais é pedido ao médico que prescreva a Psicologia. Isto não faz qualquer sentido, porque a Psicologia não é uma área da Medicina. Posso pedir ajuda a um psicólogo para melhorar a minha performance desportiva ou os meus resultados na empresa, por exemplo, ou para tentar perceber se estou preparada para ser mãe um dia. 

Não tem de existir um problema para procurar um psicólogo. Até porque, por exemplo, nas fases de transição de vida, como a adolescência e a entrada na velhice, ou numa situação de divórcio, pode ser necessário intervir, não porque haja qualquer problema com a pessoa, mas apenas porque aquela fase abana a sua estrutura. 

 

O ideal seria que as pessoas vissem o psicólogo também de uma perspetiva preventiva, recorrendo a este tipo de cuidado antes que se desenvolva algum problema? 

Sim, isso seria o ideal. O meu sonho seria termos um psicólogo de família, à semelhança do médico de família, com o qual fazemos análises de rotina, mesmo quando não estamos doentes. Não faz sentido continuar a haver estigma, mas ele continua a existir. Mesmo quando existe doença mental – muitas vezes ligeira, e pela qual todos passamos em algum momento na vida – continua a ser difícil explicar aos amigos. As pessoas têm tendência para se isolar ou para procurar pessoas mais distantes porque, às vezes, é difícil dizer à família ou a um amigo que estão deprimidas ou a passar uma fase de ansiedade. Estes termos ainda são muito conotados com a doença mental e a cultura. 

A maior consciência da importância da saúde mental combinada com a falta de respostas no campo mais científico tem levado a um grande desenvolvimento de áreas mais alternativas, como o reiki, a numerologia e o ramo da espiritualidade. As pessoas precisam de respostas para os conflitos que sentem, e procuram-nas em diversos campos. 

 

Que efeito teve a pandemia no campo da saúde mental? 

Houve famílias que entraram em rutura financeira total e isso, como em qualquer outra crise, também provoca uma rutura emocional. Aliás, do ponto de vista financeiro, ainda não é possível perceber bem o que vai acontecer a médio/longo prazo, porque vivemos um tempo de alguma euforia pelo facto de podermos fazer coisas que nos estiveram vedadas durante 2 anos. No entanto, com exceção destas questões financeiras, não sinto que a pandemia tenha criado novos problemas de saúde mental além dos que já estavam camuflados. 

 

Acentuou problemas que já existiam? 

O que a pandemia fez foi trazer à superfície questões que estavam mais escondidas devido à correria do dia a dia e às rotinas. No quotidiano, as pessoas têm muitos escapes para não olharem para dentro de si mesmas: redes sociais, consumismo, dinheiro e outras distrações. O tempo de paragem forçada devido aos confinamentos foi assustador para algumas pessoas, não pela pandemia em si, mas porque tiveram de ficar com o marido, a mulher ou os filhos 24 horas por dia, sem escapes. Alguns problemas já lá estavam e acordaram com a pandemia. Chegam-nos pessoas que ficaram mais alerta para as questões da saúde mental, mas quando vamos explorar a sua história clínica, percebemos que já lá estavam antes. O isolamento apenas obrigou a pessoa a olhar para os seus fantasmas interiores. 

Por outro lado, na pandemia houve muitas especulações. Dizia-se: “A partir de agora, vamos ser mais humanos e vamos estar mais atentos ao outro.” Mas isto não se processa desta forma: nem com uma pandemia, nem com uma guerra. O ser humano não muda facilmente padrões de comportamento que já têm milhares de anos. 

 

De que modo deve esta maior sensibilização para a saúde mental ser aproveitada? 

Acho mesmo que este tema não vai cair no esquecimento. Não podemos deixar que a procura do psicólogo volte ao que era. Para já, acho importante percebermos a capacidade que temos para nos adaptar. Fizemos algo incrível: superámos uma pandemia de enorme impacto que nos apanhou sem aviso. Agora que estamos numa fase melhor, temos de reconhecer que há coisas que não podemos esconder. Temos de falar mais sobre sentimentos, fazer mais palestras, acabar com o desconhecimento gigante que existe em áreas como a sexualidade, as questões de género, etc. Quantas vezes, perante um amigo a passar uma fase de depressão, as pessoas se afastam porque não sabem como reagir? É exatamente o oposto daquilo que se deve fazer. 

 

Devemos estar mais atentos a alguns sinais? 

Por norma, a doença mental é muito mais silenciosa do que a física. Mas as pessoas não deprimem nem entram em rutura emocional de um dia para o outro. Devemos ter mais conhecimento sobre estes sinais, sobre o corpo e sobre o cérebro, independentemente das respostas médicas, alternativas ou espirituais. 

Como pensamos? Como processamos determinadas informações? Muitas pessoas assustam-se porque passaram por uma situação traumática aos 10 ou 11 anos e só aos 30 é que esse efeito se manifesta. Há temas muito sensíveis que são reprimidos. E todos perdemos com isso, de uma forma ou doutra, porque também não sabemos ajudar um amigo ou familiar com este tipo de problema.  

 

O que pode ser melhorado na organização de cuidados? 

Agora que já há maior sensibilização para a área da saúde mental, temos de dar continuidade, integrando mais psicólogos no sistema de saúde, nomeadamente nos centros de saúde e nas escolas, uma vez que é nestes cuidados primários que se “apanham” as pessoas numa primeira linha. 

Além disso, o acesso aos especialistas em saúde mental continua a ser caro, porque ainda passa muito pelo privado. Precisamos de mais iniciativas para facilitar este acesso a todos. A Ordem dos Psicólogos tem trabalhado muito neste âmbito, levando o tema à televisão, desenvolvendo muita literatura e vídeos para a população geral. As pessoas já me dizem que estiveram no site da Ordem a pesquisar sobre estes assuntos. 

 

Os profissionais de saúde que não trabalham diretamente na saúde mental valorizam devidamente esta área? 

Penso que este aspeto tem vindo a melhorar, embora ainda haja um caminho a percorrer. Era comum o médico de outra especialidade reencaminhar o doente para a Psiquiatria e não tanto para a Psicologia. Penso que nem o fazia por estigma, mas por desconhecimento sobre o trabalho do psicólogo. Também sinto que há atualmente uma maior ligação entre o psiquiatra e o psicólogo. Hoje, quando envio um e-mail ao psiquiatra de um doente que sigo a descrever o que vou sentindo, o psiquiatra responde com muita frequência e mostra-se muito mais acessível. 

Ainda assim, a comunicação dos profissionais entre si e com o doente tem de ser melhorada. Ainda me chegam pessoas que já passaram por vários psiquiatras e pelo médico de família, que até já foram medicadas, mas a quem nunca foi dito que problema tinham. Convém darmos às pessoas a informação de que precisam, porque se não a transmitirmos de forma credível, elas vão procurá-la em fontes não credíveis ou comparar o seu caso com histórias parecidas. 

 

A articulação entre o psiquiatra e o psicólogo é particularmente importante… 

Sem dúvida. Por norma, o psiquiatra faz a prescrição e depois vê a pessoa de 3 em 3 ou de 6 em 6 meses. O psicólogo, por seu turno, tem consultas semanais ou quinzenais, num caso mais agudo. Isto torna mais importante que os três elementos (psiquiatra, psicólogo e utente) comuniquem muito bem. 

Além disso, ainda há um grande desconhecimento sobre algumas questões específicas da Psicologia. Tenho colegas psiquiatras que me colocam questões muito específicas da área da Psicologia que me fazem pensar: “Isto já é tão antigo e ainda não chegou à Psiquiatria.” Se assim é, muito menos terá chegado a um ortopedista ou a um fisioterapeuta, por exemplo. 

 

Que papel podem os profissionais de farmácia desempenhar na área da saúde mental? 

Tal como o centro de saúde, a farmácia é o primeiro local onde as pessoas vão quando têm um problema. E eu sinto que os profissionais de farmácia têm consciência desta proximidade e, no geral, têm o cuidado de tratar as pessoas pelo nome e perceber o que está a acontecer na sua vida. A venda de um medicamento pode passar de 5 minutos a uma hora porque a pessoa acaba por partilhar os seus problemas ali. Acabam por ser uma espécie de primeiro “psicólogo”: “Tome isto ou aquilo, vai ver que ficará melhor.” É um trabalho relacional/emocional muito forte, e as pessoas precisam de sentir esta segurança da parte do profissional de saúde. A questão é que os farmacêuticos também estão sujeitos a algumas pressões, o que dificulta esta comunicação com o doente. 

Em que medida essas pressões comprometem a eficiência e o bem-estar dos profissionais de farmácia? 

Há questões que não são visíveis para o lado de cá do balcão da farmácia, mas que chegam a levar ao burnout dos profissionais ou a depressões. O trabalho por turnos, por exemplo, é uma das dificuldades. Por vezes, os farmacêuticos estão ali a absorver os problemas dos utentes, quando eles próprios não estão muito bem. 

A competição com os colegas é outro problema. Há pessoas que lidam muito mal com essa pressão. Tal como o burnout: durante a pandemia, os profissionais de saúde em contexto hospitalar queixavam-se muito de nem terem tempo para almoçar. Também não há tempo para dormir. As pessoas estão em constante alerta, a receber telefonemas, e-mails ou mensagens a qualquer hora. Esta hipervigilância tem consequências do ponto de vista emocional. 

No caso particular dos farmacêuticos, um aspeto muito sensível é a possibilidade da automedicação. O farmacêutico tem acesso direto à medicação e pode facilmente tomar qualquer coisa para dormir melhor, mesmo que seja um produto natural. Tenho de perceber que, de cada vez que tomo um comprimido para ver se fico melhor, estou a automedicar-me.  

 Sinais de alerta para problemas de saúde mental 

  • Sente-se stressado/a ou apático/a? 
  • Acorda sem encontrar sentido no que vai fazer naquele dia (mesmo que não goste particularmente da sua atividade profissional)? 
  • Deixou de fazer aquilo de que gosta (ex.: sair à noite, fazer programas com os amigos, ir ao cinema, fazer o seu hobby)? 
  • Sente-se irritado/a com frequência? 
  • Dorme bem? 
  • Sente-se cansado/a, mesmo ao fim de semana? 
  • Tem o ritmo cardíaco acelerado sem estar a fazer esforço físico? 
  • Sente frequentemente dores no estômago ou intestinos, pressão no peito ou dor de cabeça? 
  • Tem falta de apetite? 
  • Tem dificuldades de concentração ou memória? 

Se respondeu afirmativamente a algumas destas questões, pode ter algum problema de saúde mental. Procure um psicólogo. O mesmo se aplica aos utentes da sua farmácia. 

Como deve proceder um profissional de farmácia que detete estes sinais de alerta num utente? 

Deve sugerir que ele fale com um especialista, seja o médico de família, um psiquiatra ou um psicólogo. Depois, estes profissionais vão orientar o doente consoante o problema em causa. 

É importante que os farmacêuticos tenham algum conhecimento sobre saúde mental para ajudarem a encaminhar os seus utentes quando necessário. Aliás, sinto que os farmacêuticos têm cada vez mais essa abertura, o que é muito importante para dar segurança ao utente, com quem já têm, muitas vezes, uma relação de confiança. Muitos utentes vão ao médico, não colocam as questões que têm e depois vão pô-las na farmácia. 

 

Há casos em que é preferível aconselhar o psicólogo em detrimento do médico ou vice-versa? 

Depende muito da queixa. Por exemplo, se uma mãe está preocupada porque o filho está a estudar, mas parece ter problemas de concentração ou memória, algo muito inespecífico, o farmacêutico pode perguntar se existe um psicólogo na escola e aconselhar a mãe a falar com o diretor de turma para fazer esse encaminhamento. 

Se um utente se queixa de que a mãe, com 50 e tal anos, está há uma semana fechada em casa, deprimida, a dizer que quer morrer, provavelmente o mais indicado é uma consulta de Psiquiatria, que pode ser prescrita pelo médico de família. A mesma coisa se um pai se queixa de que o filho se anda a cortar ou a ter outro comportamento lesivo que ameace a integridade física ou psicológica do próprio ou de terceiros. Outra opção para obter alguma orientação é ligar para a linha do SNS 24 (808 24 24 24), que também inclui um serviço de aconselhamento psicológico. 

//Entrevista por Luís Garcia

Content manager na Phormula

Outubro 2022

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