Deixar de fumar: qual o papel das farmácias?

Muitas pessoas recorrem às farmácias e a produtos de venda livre para deixar de fumar. A Dr.ª Marta Nazha, especialista em Medicina Geral e Familiar e da equipa da Consulta de Cessação Tabágica do ACES Arrábida, comenta a eficácia destes produtos, a importância da Intervenção Breve por parte dos farmacêuticos, bem como da multidisciplinaridade e formação neste contexto.

Quais os principais malefícios do tabaco?

Quase 30% dos cancros são provocados pelo tabaco, incluindo cancros do pulmão, da mama, da bexiga, de todo o aparelho respiratório (laringe, boca, lábio, etc.), entre outros. Além disso, a evidência científica demonstra que o tabagismo é um dos principais fatores de risco de doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), entre muitas outras, como doença coronária ou diabetes. A realidade é que o tabaco faz mal à saúde no geral. Além dos malefícios, é importante destacar os benefícios de deixar de fumar.

Quais são os benefícios de deixar de fumar?

É importante lembrar os doentes do quão benéfico é deixar de fumar. E os profissionais de farmácia podem ter um papel fundamental na disseminação desta mensagem.

Quando se deixa de fumar, após:

20 minutos • A frequência cardíaca volta ao normal.

8 horas • Os níveis de oxigénio voltam ao normal.

48 horas • Deixa de existir monóxido de carbono no corpo.

3 dias • Respira-se mais facilmente e tem-se mais energia.

7 dias • Recupera-se o paladar e o olfato.

2 a 12 semanas • A circulação sanguínea melhora.

3 a 9 meses • A função pulmonar melhora em 10%.

1 ano • O risco de doença cardíaca reduz para metade.

5 anos • Os riscos de AVC reduzem para os mesmos de um não fumador. Em comparação com o dia em que deixou de fumar, o ex-fumador já reduziu os riscos de cancro da boca, garganta, esófago e bexiga para metade.

10 anos • A probabilidade de desenvolver cancro do pulmão reduz para metade.

15 anos • O risco de ter uma doença cardiovascular é o mesmo de um não fumador.

Considera que a sociedade em geral está mais sensibilizada para as mais-valias de deixar de fumar?

Julgo que sim, mas a mensagem tem sido muito focada nos malefícios, especialmente pelas medidas políticas que têm vindo a ser tomadas, como as imagens impactantes nos maços ou as proibições de fumar em vários espaços. O que eu noto nas pessoas que vêm à minha consulta é que têm a noção dos malefícios, sabem que faz muito mal à saúde, mas não têm tanta noção dos ganhos que têm ao deixarem e fumar. É esse aspeto que procuramos salientar.

Ainda há muitos fumadores em Portugal, apesar da tendência decrescente dos últimos anos?

Segundo os dados do Inquérito Nacional de 2019, 16,8% da população acima dos 15 anos era fumadora1. Houve uma pequena redução desde 2010. Mas temos de estar alerta, porque atualmente existem vários tipos de produtos. O consumo de novas formas de tabaco, como o tabaco aquecido e os cigarros eletrónicos, tem vindo a aumentar. A indústria tabaqueira tem vindo a apresentar novas soluções, vendendo-as como se não prejudicassem a saúde. Uma grande parte dos fumadores julga que ao transitar para esses novos produtos está a fazer menos mal à sua saúde, e isso não é verdade.

O tabaco aquecido e os cigarros eletrónicos fazem tão mal como o tabaco convencional?

Trata-se de algo recente, pelo que há poucos estudos. No entanto, os que existem não deixam margem para dúvidas. Além disso, demonstram outro tipo de problemas, como pneumonias químicas relacionadas ao tabaco eletrónico. Temos de ter muito cuidado com estas novas formas de tabaco, até porque são produtos atrativos também para os mais jovens. A indústria vende o produto como menos prejudicial, sem cheiros, até com sabores diferentes… mas a mensagem é errada. Todas as formas de tabaco fazem mal à saúde.

As políticas públicas de controlo do tabagismo têm sido suficientes?

O Programa Nacional de Prevenção e Controlo do Tabagismo está a ser implementado e tem objetivos muito concretos. No entanto, a luta contra o tabagismo exige um esforço dos profissionais de saúde, das escolas e de toda a comunidade. E é preciso ir mais além: por exemplo, as consultas dedicadas à cessação tabágica são ainda insuficientes.

As consultas de cessação tabágica são fundamentais?

Sim. Neste contexto destaco que a referenciação a esta consulta é dedicada às pessoas que se sentem motivadas e querem mesmo deixar de fumar. Ter como ponto de partida uma vontade real de deixar de fumar é crucial no processo. E os profissionais de saúde, incluindo os de farmácia, podem desde logo apostar na intervenção breve. Ou seja, explorar a vertente motivacional com o utente e perceber as suas razões para querer deixar de fumar, pois estas diferem. Se o utente estiver mesmo disposto a isso, deve ser referenciado para consulta de cessação tabágica. A motivação é fundamental neste processo, mas cada pessoa é diferente. 

A abordagem que fazemos tem de ser personalizada e adaptada ao historial do fumador. O perfil de alguém que fuma há 30 anos sem interrupções é diferente do perfil de quem já tentou várias vezes, por exemplo. A abordagem em consulta é multidisciplinar, envolvendo intervenções psicológicas, comportamentais e farmacológicas.

Quais são as maiores dificuldades em deixar de fumar?

Variam muito de pessoa para pessoa, pois existem diferentes tipologias de fumadores. Cada indivíduo é diferente, com hábitos distintos. Se, por exemplo, me deparar com um utente que tem uma dependência mais psicológica, posso propor-lhe ser acompanhado pela psicóloga da equipa. Há quem tenha uma dependência física muito forte por causa da nicotina. No caso de alguém que fume há 50 anos, que acorda de manhã e a primeira coisa que faz é fumar um cigarro, a abordagem farmacológica é também crucial. Já com uma pessoa que fuma somente em momentos de maior ansiedade, a abordagem poderá ser diferente. É importante fazer um plano individualizado.

Qual o papel das farmácias comunitárias no combate ao tabagismo?

Os profissionais de farmácia conhecem muito bem os seus utentes, os seus hábitos. Por isso, o farmacêutico pode e deve ter um papel ativo em incentivar as pessoas a deixarem de fumar e realizar uma Intervenção Breve. Em poucos minutos, pode explorar o tema, perceber as motivações, destacar os malefícios e especialmente os benefícios. E referenciar para consulta de cessação tabágica os casos que identificar. Se esse passo for ainda difícil para o utente, mas a motivação existir, pode fazer-lhe um plano de seguimento na própria farmácia. Não basta vender um produto que ajude no processo, tem de acompanhar o doente para aumentar as possibilidades de sucesso.

Isso significa que poderia fazer sentido as farmácias realizarem consultas de cessação tabágica?

Sim, pode ser uma boa ideia, com profissionais formados para esse fim, que realizassem o seguimento do utente. A consulta de cessação tabágica implica várias etapas. A primeira denomina-se fase de preparação, em que se define o dia D, ou seja, o dia em que a pessoa vai parar de fumar. Mas para chegar aí temos de explorar várias técnicas adaptadas a cada situação. Por exemplo, para reduzir o número de cigarros, uma das práticas é cada vez que sentir vontade de fumar esperar entre 3 e 5 minutos, e nesse período tentar fazer outra coisa, como beber um copo de água ou comer uma peça de fruta, com o intuito de abstrair o pensamento.

A redução de cigarros, em vez de parar de um dia para o outro, é uma técnica utilizada?

Sim, por exemplo, é difícil que pessoas que fumam 40-50 cigarros por dia parem de um dia para o outro, mesmo com recurso a fármacos e produtos de substituição. Pelo que, nestas situações, sugerimos muitas vezes uma redução gradual. Outro caso que já referi é a associação do tabaco com a ansiedade. Aí também terá de existir apoio psicológico, daí ser relevante uma abordagem multidisciplinar. A consulta de cessação tabágica, idealmente, deve ter médico de família, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, mas nem sempre é possível, infelizmente.

Em termos farmacológicos, existe medicação sem prescrição médica eficaz?

Existe uma gama variada de substitutos de nicotina, com várias formas de utilização, desde o penso ao spray, passando pelas pastilhas, entre outros. E, de facto, funcionam. Além disso, a citisiniclina (conhecida pelo nome comercial Dextazin) – um medicamento não sujeito a receita médica – é muito interessante. Trata-se de um alcaloide vegetal, com uma estrutura química semelhante à nicotina, ou seja, vai “enganar” o cérebro.

Porém, é importante reforçar a ideia de que muitos fumadores já tentaram deixar de fumar recorrendo a estes produtos sem procurar aconselhamento, acabam por não ter confiança nos mesmos e desmotivam. Mais uma vez, o farmacêutico tem aqui um papel muito importante. Além de ser um agente motivador, deve explicar como cada produto funciona e qual a dosagem indicada, pois varia mesmo entre produtos semelhantes. Deve também alertar para os sintomas de abstinência, que muitas vezes os doentes acabam por associar ao medicamento. E, mais uma vez, incentivar à preparação e ao acompanhamento do utente, para não o deixar sozinho no processo.

Idealmente, como deve ser feito o seguimento destas doentes?

O Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do tabagismo identifica 15 passos fundamentais para deixar de fumar. Avaliar a dependência física da nicotina, em que se utiliza o teste de Fagerström, também é muito importante, para percebermos como atuar com cada pessoa. Por outro lado, é fundamental conhecer muito bem o utente, não só os seus hábitos, mas também as comorbilidades, porque todos os fármacos têm contraindicações. A Intervenção Breve é muito diferente de uma consulta de cessação tabágica, de apoio intensivo, mas é um primeiro passo.

A acupuntura e outras terapias semelhantes podem ser uma alternativa?

Como cientista, tenho de dizer que fazemos tudo com base na melhor evidência científica que existe até à data. Há estudos robustos que comprovam a eficácia de vários fármacos, tanto de venda livre como de prescrição médica obrigatória. Para outro tipo de terapias, como a acupuntura, não existem dados científicos validados.

Os profissionais de saúde estão devidamente sensibilizados para esta questão? Há necessidade de maior formação nesta área?

Apesar de se falar mais sobre o tema, nem todos os profissionais de saúde o abordam da forma mais adequada (ou de todo) junto dos pacientes. Há que começar a aprofundar um pouco mais. Claro que, muitas vezes, os tempos de consulta são limitados, mas existe até material informativo, como panfletos, que podem e devem entregar aos seus utentes. Em termos de formação para profissionais de saúde, incluindo profissionais de farmácia, esta deveria existir pelo menos para a intervenção breve. O impacto seria muito maior.

O exemplo da ACES Arrábida

A Consulta de Cessação Tabágica do ACES Arrábida, cujo responsável é o Dr. Gianfranco Ricchiuti, retomou em outubro do ano passado. O polo de Setúbal conta também com a Dr.ª Sara Madeira, especialista em Medicina Geral e Familiar e responsável pela consulta de Cessação Tabágica, e a Dr.ª Rita Ribeiro, psicóloga, além da Dr.ª Marta Nazha. Além disso, esta Consulta pretende atualmente desenvolver parcerias no âmbito da nutrição e da higiene dentária para acompanharem os doentes num processo global de recuperação de bem-estar e saúde.

Referências

1. Instituto Nacional de Estatística. Inquérito Nacional de Saúde 2019. Disponível em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=414434213&DESTAQUESmodo=2. Consultado em 7.06.2023.

//Entrevista de Marisa Teixeira

Content Manager na Phormula Group

Junho 2023

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